Com vistas a debater as múltiplas tendências e os impactos do “Edu-business” para a realização do direito humano à educação, #Contracorriente entrevistou a pesquisadora da Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP), Brasil, Theresa Adrião, e o pesquisador Gustavo Paiva, da ONG Ação Educativa, ambos co-autores do estudo Sistemas de Ensino privados na educação pública brasileira: consequências da mercantilização para o direito à educação, realizado no âmbito da PERI (Privatization in Education Research Initiative) da Open Society Foundations. A pesquisa contou ainda com a participação das pesquisadoras Raquel Borghi, Teise Garcia e Regiane Helena Bertagna, e do pesquisador Salomão Ximenes. Acesse a página com uma síntese dos dados da pesquisa: http://www.observatoriodaeducacao.org.br/mapas/#/
Na entrevista, que faz parte do Especial “La Educación Privatizada”, a equipe de pesquisa destaca as consequências da venda de sistemas de ensino privados às gestões municipais do Brasil, mercado em que hoje figuram grandes multinacionais do ramo educativo e editorial, em particular o impacto para a realização do direito humano à educação. Leia a seguir.
Em que consiste o fenômeno dos sistemas de ensino privado na educação pública brasileira?
Theresa Adrião (TA) – Trata-se da política pela qual os governos transferem as funções de elaboração e operacionalização da política educacional para a esfera privada comercial. Nesse sentido, os sistemas privados de ensino se constituem em uma “cesta” de serviços e produtos constituída por atividades tradicionalmente desenvolvidas pelas equipes pedagógicas dos órgãos da administração pública e das escolas: formação continuada de educadores, efetivo acompanhamento das atividades docentes; investimento na produção e distribuição de materiais didáticos aos alunos; e processos de avaliação externa e interna estão entre os principais encontrados.
Por essa razão, para além dos problemas pedagógicos derivados da adoção de material instrucional – em alguns casos desde a pré-escola -, o que é importante destacar é o fato de que as empresas privadas passam a vender os chamados “sistemas de ensino”, a interferir na gestão do próprio sistema escolar público local.
Quantos e quais são os grupos privados que hoje atuam na educação pública no Brasil? Em quantos municípios eles estão presentes?
TA – Essa modalidade de privatização da política educacional, segundo pesquisas anteriores (Adrião et al. 2009), teve início no estado de São Paulo em 1998, por iniciativa do então grupo COC-NAME, segmento adquirido pela Pearson em 2010.
Gustavo Paiva (GP) – Infelizmente, por restrições de acesso a dados das empresas sobre o tema, e pela inexistência de dados públicos consolidados, não conseguimos inventariar o total de municípios brasileiros que estão transferindo a política educacional para as corporações. Ainda assim, conseguimos identificar, por meio de pedidos de informação aos tribunais de contas dos estados e aplicação de questionários diretamente aos municípios, que em 2013, ano base para a coleta de dados desta pesquisa, ao menos 339 municípios brasileiros adotavam sistemas privados de ensino. Além disso, para o estado de São Paulo, dados de 2010 indicavam que 269 municípios implantaram esse tipo de política.
Sobre a quantidade de empresas e grupos que disputam o “mercado”, não temos dados consolidados, mas na pesquisa mapeamos os cinco maiores grupos em atuação: Abril Educação (hoje Somos Educação), que vende o sistema Anglo; Pearson, que atua com a venda do sistema Name; o Grupo Positivo; o Grupo Objetivo, que vende o Sistema Objetivo Municipal de Ensino (Some); e o grupo Santillana, que atua na venda do Uno Público.
A identificação desses grupos é decorrente de levantamento anterior, pelo qual se identificou o crescimento de dois grupos que resultaram da fusão de empresas nacionais e da aquisição dessas por grupos transnacionais, inclusive por meio da disposição de suas ações na bolsa de valores. Em meio a tais grupos, há empresas de grande poder econômico no Brasil, como o Objetivo, mas também as maiores corporações internacionais, como Pearson e Santillana, ligada ao grupo espanhol Prisa.
Como entender as diferenças de perfil entre eles? O que permitiu a ascensão de grupos nacionais, que outrora eram somente provedores de educação privada em colégios particulares – como o Objetivo –, e a entrada das corporações estrangeiras no país como atores centrais da educação pública brasileira?
TA – Um primeiro ponto para o qual a pesquisa chama a atenção, e que tem sido pouco explorado na defesa da educação como direito, é que, para além da presença de corporações transnacionais na definição das políticas educativas, é a ampliação da presença de fundos de investimento no controle acionário desses grupos. Ou seja, é o capital especulativo que passa a controlar os grupos privados que atuam na definição da política educacional subnacional brasileira.
Caso exemplar é o da Abril Educação, do antigo COC/Name (agora Pearson) e da Santillana, os quais, ao abrirem seu capital na Bolsa de valores, passaram a ser geridos, ao menos em parte, por fundos de investimento. Nesse “mercado”, representado pelos sistemas privados de ensino, as matrículas das escolas públicas são consideradas como uma espécie de commodities pelos investidores. Além desse fenômeno, os grupos privados com maior presença no “mercado” da educação pública, por meio da venda dos sistemas privados, disputam os fundos públicos em âmbito federal, especialmente por meio de sua participação no Programa Nacional do Livro Didático, o PNLD. Assim, a pesquisa indica que os grupos são duplamente favorecidos: por meio da presença direta na formulação e implantação de políticas educacionais via venda de sistemas privados de ensino e, concomitantemente, por meio da venda de produtos editoriais ao governo federal, via PNLD.
Como entender o interesse dos municípios por esse tipo de serviços?
TA – Partimos de pesquisas anteriores que desenvolvemos, segundo as quais a ampliação dos mecanismos de descentralização da oferta educacional para municípios (municipalização), onde, na grande maioria dos casos, há baixa capacidade técnica e financeira, aliada aos limites de gastos impostos pela Lei de Responsabilidade Fiscal, à pressão dos grupos privados e a um discurso midiático que atribui a qualidade da educação à natureza privada de seu provedor, permitiu a inserção desse tipo de estratégia de privatização e, em certo sentido, de desresponsabilização de governantes sobre a política implantada pelos grupos privados.
GP – Além de a municipalização não vir acompanhada de repasses dos governos federal e estaduais capazes de dotar os municípios de capacidade técnico-administrativa equivalente à tarefa imposta, os municípios tendem a estar mais suscetíveis a um discurso de desqualificação da educação pública ante a privada. Contribuem para isso a forma como o governo federal divulga avaliações externas, sem considerar as desigualdades socioeconômicas entre os sujeitos atendidos pela educação pública e pelas escolas privadas, e o alto investimento das empresas privadas em publicidade. Identificamos municípios que optaram pela adoção de um determinado sistema privados de ensino por este ser “uma marca forte” na região ou por haver escola privada da mesma empresa no município.
Em que medida a presença dos sistemas privados de ensino na educação pública ameaça a realização do direito humano à educação?
TA – A compra de sistemas privados de ensino pelas redes municipais públicas pode levar a duas situações que impactam diretamente a disponibilidade de recursos para a educação nos municípios. Se não deixa de receber livros do PNLD, ao comprar sistemas privados de ensino, o município duplica os gastos (hoje feitos pelo governo federal via PNLD) com um mesmo fim. Se o município deixa de receber materiais do programa nacional, ele não duplicará os gastos, mas também reduzirá substancialmente sua capacidade de disponibilizar novas vagas no sistema público, devido à redução dos recursos públicos disponíveis para a criação de oportunidades, principalmente nas etapas não obrigatórias e naquelas em que é baixa a cobertura.
Essa questão é particularmente importante se considerarmos a ampliação da obrigatoriedade do ensino pela emenda constitucional 59/2009, que prevê a universalização da pré-escola, e as metas de ampliação do atendimento em creche constantes do novo Plano Nacional de Educação, ambas responsabilidades dos municípios. Em outras palavras, a compra dos sistemas privados impacta o direito humano à educação, reduzindo a disponibilidade de recursos para a ampliação de oportunidades educacionais.
Outra questão percebida no estudo é a necessidade de analisar os processos decisórios pelos quais os gestores públicos buscam sistemas privados de ensino. Neste sentido, é possível distinguir dois momentos: o primeiro é a própria decisão sobre adotar ou não um sistema privado de ensino, já o segundo momento se refere à decisão sobre que sistema adotar dentre aqueles ofertados no mercado educacional privado.
Os sistemas privados nas escolas públicas, com isso, tendem a submeter escolas, professores e estudantes à homogeneização e ao enfraquecimento de suas capacidades enquanto sujeitos ativos e criadores na realização do direito à educação. Nesse sentido, opõem-se à gestão democrática da educação e, mais grave que isso, promovem a dependência das redes públicas aos serviços privados, já que não estimulam o desenvolvimento de capacidades locais para a produção de propostas pedagógicas, formações e avaliações.
Por fim, para grupos historicamente marginalizados em seu direito à educação, a falta de transparência, de participação e de controle estatal sobre os sistemas privados de ensino coloca em dúvida sua capacidade de promover a inclusão e o reconhecimento de estudantes com deficiência ou necessidades especiais, do campo, de comunidades indígenas e quilombolas e demais populações tradicionais, bem como a adaptabilidade dos materiais a esse público, que necessita ter seu direito humano à educação plenamente atendido.
O que pode ser feito para reverter tal processo e permitir que haja, de fato, um fortalecimento da educação pública e gratuita para todas as pessoas, como um direito humano e responsabilidade do Estado?
GP – Uma das grandes questões a se enfrentar é a capacidade financeira dos municípios para executarem suas políticas educacionais. Neste sentido, a implementação do Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi) e, posteriormente, do Custo Aluno Qualidade (CAQ) [indicador para o financiamento do direito humano à educação desenvolvido por pesquisadores da área, em aliança com a Campanha Nacional pelo Direito à Educação do Brasil] é fundamental para que os municípios consigam manter seus investimentos, remunerar professores e equipes técnicas e criar oportunidades educacionais. Isso, contudo, não será suficiente e até pode agravar os processos de privatização, uma vez que haverá mais recursos públicos disponíveis para o “mercado educacional”, se não avançarmos nos processos de gestão democrática.
Em outras palavras, o mais urgente é fortalecer os mecanismos de gestão participativa das políticas educacionais: os conselhos municipais de educação, conselhos do Fundeb [Fundo de Manutenção e Desenvolvimento da Educação Básica e de Valorização dos Profissionais da Educação], da merenda escolar, a participação na implementação, monitoramento e avaliação dos planos municipais de educação, além dos mecanismos de gestão democrática dentro das próprias unidades escolares. Somente com a participação de todos e todas na definição e na implementação das políticas educacionais será possível garantir uma educação de qualidade, voltada para as necessidades efetivas das populações de cada território e que atenda efetivamente o direito humano à educação.
“La educación privatizada” – Leias as outras duas entrevistas que fazem parte do Especial (em espanhol)