“A lógica do mercado é incompatível com o oferecimento de uma educação de qualidade”

Após estudar o caso da empresa Anhanguera, a mestre em direitos humanos Denise Moretti, fala sobre qualidade do ensino superior privado, a necessidade de regulamentação e a rápida expansão das empresas educacionais.

Fuente: Observatório da Educação

Denise Moretti legendado (1)Baseada principalmente na oferta por meio de Instituições de Ensino Superior (IES) privadas, a expansão do ensino superior no Brasil não foi acompanhada da garantia da qualidade educacional. A conclusão é da advogada e mestra em direitos humanos pela Faculdade de Direito do Largo São Francisco (USP).

Por meio de sua dissertação de mestrado “A compatibilidade entre a lógica econômica e o ensino superior, após a Constituição Federal de 1988: o caso da Anhanguera Educacional Participações S.A.”, Denise apresenta estudo detalhado sobre as IES privadas no Brasil e analisa o caso da empresa Anhanguera: a primeira da área da educação a ter capital aberto na bolsa de valores e que poderá formar a maior instituição privada de ensino do mundo.

Em entrevista ao Observatório da Educação, a pesquisadora expõe algumas das conclusões de sua pesquisa e aborda temas como a qualidade da educação, a necessidade de regulamentação e a expansão destas instituições no Brasil.

Veja a entrevista completa abaixo:

Observatório da Educação – Como a expansão do ensino superior privado influencia na qualidade da educação oferecida aos alunos e como influencia a luta pelo direito à educação?

Denise Moretti – A expansão do ensino superior privado no Brasil se deu, principalmente, pelas instituições privadas com fins lucrativos.

Como estudo de caso, analisei especificamente o caso da Anhanguera, que é uma companhia aberta com ações negociadas na bolsa de valores e que representava o segundo maior grupo educacional do mundo em 2011, com mais de 400 mil alunos. Em sua expansão, a Anhanguera buscou reduzir custos, gerar ganhos de escala e aumentar seus lucros. Para tanto, demitiu professores, estabeleceu um modelo operacional padronizado e incentivou a educação à distância.

Analisando as avaliações das instituições do grupo Anhanguera, percebe-se que a qualidade do ensino oferecido não evoluiu juntamente com esta expansão. A maioria das instituições do grupo recebem notas mínimas para aprovação no IGC [Índice Geral de Cursos, do MEC], com algumas IES reprovadas. De maneira geral, grandes empresas como a Anhanguera não alcançam notas altas nas avaliações, mas atendem a uma quantidade de alunos muito grande, porque são empresas de massa, que possuem mensalidades baixas.

Observatório – E como você identificou a baixa qualidade do ensino oferecido por estas empresas?

Denise – Além de dados oficiais do INEP/ MEC [Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira, do Ministério da Educação] e do Ranking Universitário Folha (RUF), eu utilizei informações públicas disponibilizadas pela própria Anhanguera em seu site de relações com investidores e nos sites da CVM e daBMF&BOVESPA.

A partir destes dados, a qualidade pode ser analisada de várias maneiras, como, por exemplo, pela quantidade de professores especialistas, mestres, doutores, pós-doutores e livre-docentes. Por meio de dados do INEP, verifica-se que nas instituições privadas predominam professores especialistas e mestres (84,6% em 2010), enquanto nas instituições públicas, predominam os doutores (49,9% em 2010). Na lista das 10 universidades com maior número de professores doutores, pós-doutores e livre-docentes não há nenhuma instituição privada. Outro dado é que enquanto nas instituições privadas predominam professores horistas (48% em 2010), nas instituições públicas a maior parte trabalha em tempo integral (80,2% em 2010).

“Na lista das 10 universidades com maior número de professores doutores, pós-doutores e livre-docentes não há nenhuma instituição privada”

Observatório – Na dissertação você fala sobre a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão. Como a atuação da Anhanguera, voltada principalmente para o ensino, influencia a qualidade da educação oferecida a seus alunos?

Denise – Primeiro, porque ela é composta principalmente por faculdades que não precisam atender a esta indissociabilidade. Segundo, porque atividades de pesquisa e extensão requerem investimentos altos, com retorno não previsível e que uma empresa voltada ao oferecimento de educação de baixo custo não tem interesse em assumir.

Dentro de sua estrutura, a Anhanguera tem apenas três universidades que têm que cumprir com a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, sendo que os projetos de extensão, por exemplo, são realizadas como ações de responsabilidade social e divulgadas como forma de promoção e de marketing.

Na avaliação do RUF, a qualidade do ensino (que é o foco da empresa) destas três universidades teve nota zero. As notas em pesquisa também foram baixas e a avaliação pelo mercado também não foi positiva. Pelas notas do IGC, num universo de 2.136 IES do país em 2011, a melhor faculdade do grupo ocupava a 177ª colocação, e a melhor universidade do grupo ocupava a 724a colocação.

Observatório – Mas é possível dizer que este é um modelo emblemático de negócio para além do caso específico da Anhanguera?

Denise – Sem dúvida. Na formação das empresas Anhanguera, Kroton, Estácio e Uniseb, houve a participação de fundos de investimento nacionais e internacionais ou de empresas de educação internacionais. Após o ingresso na bolsa de valores, todas elas investiram em aquisições, expansão no número de alunos e ganhos em escala. Cinco meses depois da notícia da fusão das empresas Anhanguera e Kroton, outras duas grandes empresas (Estácio de Sá e UniSeb) também se fundiram, seguindo um movimento de concentração do mercado, de educação à distância e de metodologia padronizada.

Observatório – Em sua dissertação, você afirma que a alteração da legislação teria facilitado a ascensão do ensino superior privado no Brasil e cita a Lei de Diretrizes e Bases, de 1996. Como a LDB contribuiu com este processo de expansão das IES privadas?

Denise – Primeiro, a LDB quebrou o modelo universitário. No Brasil, até então, havia foco nas universidades e a LDB permitiu a criação de novas formas da organização acadêmica, como os chamados centros universitários. Estes centros são interessantes porque têm autonomia para criar e extinguir cursos, aumentar e diminuir vagas, mas não precisam observar a indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão que têm um alto custo.

Um ano depois da LDB, em 1997, tivemos dois decretos (2.207/97 e 2.306/97) importantíssimos que permitiram que as mantenedoras de instituições de ensino superior adotassem a forma de [instituição] “com fins lucrativos”. Até então elas não poderiam ter fins lucrativos, sendo sempre no formato de associações ou fundações.

Com a possibilidade de adotar a forma de instituições com fins lucrativos, estimulou-se a formação de empresas de ensino superior, com sócios – que poderiam ser simplesmente investidores e sem nenhuma ligação com a instituição – que investiam naquele negócio visando os lucros da atividade.

Observatório – E quais são, em sua opinião, as principais medidas a serem tomadas para a regulação do ensino superior no Brasil?

Denise – O aprimoramento do sistema de avaliação e uma maior intervenção do Estado na atividade educacional. A avaliação atual engloba a análise das instituições, dos cursos e dos alunos. No entanto, é muito burocrática e baseada em rankings que não dão conta da complexidade do sistema. A avaliação que hoje é muito limitada deveria refletir o que o Estado almeja para o ensino superior no Brasil: se quer um ensino superior mais técnico ou um ensino superior com uma formação mais ampla.

No que se refere à necessidade de intervenção do Estado, quanto mais livre estiver o setor privado, mais ele buscará a redução de custo, criação de escala e maximização dos seus lucros. E este conjunto de objetivos é incompatível com uma educação de qualidade. O setor privado, segundo uma lógica empresarial, vê a educação como negócio e não expande sua visão.

“Quanto mais livre estiver o setor privado, mais ele buscará a redução de custo, criação de escala e maximização dos seus lucros. E este conjunto de objetivos é incompatível com uma educação de qualidade”.

Observatório – Como você avalia a condição do trabalho docente neste processo de expansão do ensino superior privado e, em específico, em relação à Anhanguera?

Denise – Na Anhanguera, a progressão em que cresceu o número de alunos foi muito maior do que o crescimento do número de docentes. Do fim de 2009 para o fim de 2011, por exemplo, a empresa passou de 255 mil para 400 mil alunos (crescimento de 56,86%). Já o número de docentes, no entanto, passou de 6.950 para 8.849 (crescimento de 27,32%) neste mesmo período. Além disso, o número de reclamações trabalhistas contra a Anhanguera, entre 2009 e 2011, cresceu duas vezes (de 506 em 2009 para 1.171 em 2011) e o valor da contingência trabalhista multiplicou-se por sete (de R$16,8 milhões em 2009 para R$125,3 milhões em 2011).

Quando a empresa compra outras IES, ela busca diminuir seus custos, utilizando nas unidades novas professores que já possuía. Em seguida, ocorre o processo de demissão ou a adequação do salário dos docentes ao padrão do grupo. Este é um dos pontos chaves do negócio, pois, no caso da Anhanguera, por exemplo, mais de 60% dos custos da empresa são com despesas de pessoal.

Com a aquisição da Uniban pela Anhanguera, enquanto a Uniban pagava a um mestre R$ 38,00 a hora/aula, a Anhanguera pagava R$26,00 a hora/aula. Com a aquisição, ocorreu o maior corte de docentes em uma instituição de ensino nos últimos 20 anos – de 790 professores da Uniban, 380 deles foram demitidos, ou seja, quase 50% do quadro de docentes da instituição. Considerando outras IES do grupo, a Anhanguera demitiu cerca de 1500 professores apenas no final de 2011.

“Com a aquisição, ocorreu o maior corte de docentes em uma instituição de ensino nos últimos 20 anos. De 790 professores da Uniban, 380 deles foram demitidos, ou seja, quase 50%”

Observatório – As grandes empresas, principalmente após a abertura de capitais na bolsa de valores, passaram a vender ações para empresas e fundos de investimento internacionais. Como você analisa a influência de grupos estrangeiros nas IES privadas?

Denise – Nos últimos anos eles ingressaram forte no país. Na área de saúde, empresas estrangeiras não podem atuar no Brasil e queriam refletir isso na educação. Nossa legislação não prevê nenhuma vedação ao oferecimento da educação por instituições estrangeiras, nem à participação estrangeira em empresas de educação nacionais.

Há sete anos, o Projeto de Lei 7.200/2006 tem o objetivo de limitar a participação estrangeira em empresas educacionais a 30% do capital votante, mas, até o momento, ele não foi votado. Enquanto isso, empresas estrangeiras passaram a investir em empresas de educação no Brasil, como a empresa Apollo Group, que investiu na Kroton; Laureate International Universities que investiu na Universidade Anhembi Morumbi, Pearson que investiu na SEB; e os fundos de private equity GP Investments, que adquiriu participação na Estácio; e Advent International que tem participação na Kroton.

Todas estas grandes empresas de educação privada tiveram recursos de algum fundo de investimento ou de algum banco ou empresa internacional, que enxergaram o quanto é promissora a área do ensino superior no Brasil.

Observatório – E o que poderia ser feito pelo Estado neste contexto?

Denise – Em minha opinião, deveria ser feita uma regulação maior para evitar que os efeitos negativos desta estrutura empresarial atinjam a educação. Estas empresas são sim uma alternativa de mercado educacional, já que muitos alunos querem mensalidades mais baratas e cursos à distância, mas vamos depender do Estado para alguma forma de regulação que induza uma educação de ensino superior diferente desta que está sendo oferecida nestas instituições.

No entanto, nós temos que lembrar que o ensino superior privado ainda consegue ser diversificado porque ainda temos algumas instituições de elite voltadas para alguns nichos, como a GV e o IBMEC. Temos, também, instituições confessionais tradicionais como PUC e Mackenzie que são instituições interessantes porque conseguem manter um número razoável de alunos e mantêm qualidade boa. E essa qualidade é garantida por não terem fins lucrativos e conseguirem investir em professores mais qualificados, em pesquisas e em outros tipos de atividades.

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