Educação: uma saudável obsessão?

Por Zé Marcelino de Rezende Pinto | Controvérsia

Brasil: O Ministério da Educação que Mercadante herdou e o legado que deixou após a sua gestão de dois anos à frente do MEC

Podemos começar este artigo com a definição do colunista Zé Simão para o senador Mercadante: “Parece marido de aluguel: foi ministro da Ciência, ministro da Educação, agora Casa Civil, conserta torneira vazando, troca lâmpada e limpa caixa d’água!”  Na perspectiva do lúcido xará, Mercadante teria aquele perfil com que sonha todo gestor público ou privado: alguém que resolve as coisas. Já um olhar mais crítico poderia ver nele alguém que ocupa uma função pública apenas como trampolim para ­ocupar outra que esteja mais adequada às suas qualidades, e, nesse caso, o céu é o limite.

Inicialmente cabe lembrar que Mercadante ocupou o MEC após a gestão de Fernando Haddad, ministro tampão da saída de Tarso Genro do ministério. O atual prefeito de São Paulo conseguiu, porém, deixar a sua marca, em especial com o lançamento do Plano de Desenvolvimento da Educação (PDE), mas principalmente por fazer o que até então, desde 1995, nenhum titular da pasta havia conseguido: romper a barricada do Ministério da Fazenda à educação, ampliando significativamente os gastos do governo federal.

Em uma breve análise, pode-se dizer que o lado positivo de sua gestão é representado pela melhora no financiamento das universidades federais (deixando para trás os tempos de Fernando Henrique Cardoso e Paulo Renato, em que faltava até papel higiênico e boa parte dos professores era contratada de forma emergencial a salários ínfimos) e pela expansão dessa mesma rede, com o Reestruturação e Expansão das Universidades Federais (Reuni), um programa que representou, para algumas instituições federais, uma ampliação do acesso sem comprometimento da qualidade. Ressalta-se também a expansão da Rede Federal de Educação Profissional, Científica e Tecnológica.

Por outro lado, com o Programa Universidade para Todos (Prouni), Haddad rasgou a bandeira histórica do PT – e de boa parte dos movimentos sociais ligados à educação –, que estabelecia a exclusividade de recursos oficiais para escolas públicas.

Em poucos anos, a troca de vagas no setor privado (inclusive nas entidades com fins lucrativos) por isenção de impostos (superior a 600 milhões de reais por ano) criou mais vagas que todo o sistema federal de educação superior. O que se esquece é que muitas das “vagas do Reuni” já existiam antes, como política de utilização dos espaços ociosos das escolas de ensino superior privadas. A novidade é que essas instituições passaram a ganhar por essas vagas.

Além disso, houve uma expansão gigantesca do sistema de financiamento estudantil (atual Fies), consolidando um dos processos de educação superior mais privatizados do mundo. Ainda assim, o Brasil oferece, proporcionalmente, menos vagas nesse nível de ensino do que a Bolívia ou a Argentina, quando se considera a população na faixa etária correspondente. Temos o pior dos mundos: a razão de mais de dez candidatos por vaga na rede pública e milhões (exato, milhões) de vagas não preenchidas no setor privado.

E a que veio Mercante?  O novo ministro chegou com grande cacife político, a partir da experiência acumulada no Senado e com a marca de ser um dos fundadores do PT. Os que apoiavam a defesa intransigente de uma escola pública de qualidade para todos viam nele a possibilidade do resgate desse compromisso histórico do Partido dos Trabalhadores. Porém, em seu discurso de posse, em 2012, já foi possível perceber que viria mais do mesmo.

De um lado, dizendo-se antes de tudo um professor, ele assumiu o compromisso de fazer todos os esforços para assegurar o cumprimento do piso salarial nacional dos professores por parte dos governadores e prefeitos (já que a conta recai sobre os poderes públicos estaduais e municipais), bem como de lutar para estabelecer um pacto nacional pela educação que envolva a sociedade civil, os empresários, as famílias e as três esferas de governo, transformando a educação “numa espécie de saudável obsessão nacional”.  Por outro lado, disse que o Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), lançado pela presidenta Dilma Rousseff no fim de 2012, seria “um dos mais importantes objetivos estratégicos de minha gestão”.

Após dois anos de gestão, o que podemos constatar?  O Pronatec está sendo um “sucesso”. Mas o que é esse programa? Trata-se de um ProUni piorado. Em vez de partir da experiência extremamente positiva da rede técnica federal para fazer uma revolução no sistema público de Ensino Médio, articulando-o com a formação para o trabalho, a opção foi pelo modelo de formação abreviada do Sistema “S” (Senai, Senac, Senar, Senat etc.). Com um forte agravante: o Pronatec garante o repasse de mais recursos públicos para o Sistema “S”, embora este, só em 2012, tenha arrecadado 13,5 bilhões de reais, 0,3% do PIB. Diferentemente do que diz a propaganda empresarial, os recursos do Sistema “S” não são pagos pelos empresários: são tributos públicos, repassados como outros aos preços finais das mercadorias e pagos pelo consumidor final. A diferença é que esses recursos vão para as mãos dos dirigentes das entidades empresariais de diferentes regiões do País, que os administram como querem. Quem mora em São Paulo não aguenta mais ver, na tevê, um dirigente da Fiesp, coincidentemente candidato ao governo do estado. Para piorar, muitos desses cursos oferecidos são pagos. Ou seja, o cidadão paga triplamente: pela contribuição ao Sistema “S”, pelos repasses via Pronatec e, finalmente, paga diretamente alguns cursos.

E com relação aos professores, a promessa de Mercadante foi cumprida? De um início estimulante, o final foi melancólico: em dezembro de 2013, o MEC refez para baixo as estimativas das receitas do Fundo de Financiamento da Educação Básica que baliza o reajuste do piso (Fundeb) e os professores, que contavam com um reajuste no piso de 15% para 2014, terão apenas 8,3%. Talvez, por isso, no Brasil os cursos de formação docente sejam incapazes de atrair os melhores alunos do Ensino Médio, ao contrário do que ocorre, por exemplo, na Finlândia e Coreia do Sul, países em que só podem pleitear os cursos de formação docente os melhores estudantes do Ensino Médio.

Sobre o compromisso de um grande pacto envolvendo toda a sociedade que transformasse a educação numa “saudável obsessão nacional”, como disse Mercadante em sua posse, qual foi o seu legado? A tarefa seria simples. O ministro surfou na onda de um esforço gigantesco de toda a sociedade que seria a realização da 2ª Conferência Nacional de Educação (Conae) em fevereiro de 2014. Boa parte do País, por meio de conferências municipais de educação e de conferências estaduais, elegeu representantes para o grande encontro que visa consolidar um plano de educação de verdade para o País. Contudo, pouco antes da troca ministerial, o MEC cancelou a realização da Conae, alegando questões administrativas. Agora a previsão é de que aconteça em novembro, após as eleições.

Em sua saída, ele ressaltou o Pacto Nacional pela Alfabetização na Idade Certa, criticado por boa parte dos especialistas em alfabetização e que, com a realização de um exame para os alunos com 8 anos, na prática vai produzir milhões de “analfabetos na idade certa” que serão as crianças que fracassarão na prova. Destacou também a construção de creches, sem saber, contudo, que ao final de seu mandato Dilma não atingiu um quinto do total prometido.

Finalmente, Mercadante, seguindo Haddad, deixou de homologar o Caquis Custo Aluno-Qualidade Inicial (CAQI), aprovado pelo Conselho Nacional de Educação em 2010, condição básica para o pagamento do piso salarial e para a ampliação da oferta de creches com qualidade.

Em um aspecto, contudo, Mercadante está certo – embora eu creia que sua obsessão seja outra –, mudar a educação depende de uma obsessão, em especial do titular do MEC e da Presidência da República. Garantir uma escola pública de qualidade para todos os que a ela têm direito implica um esforço bem maior do que aquele feito para sediar uma Copa ou uma Olimpíada, ou para acabar com a inflação, mas talvez seja um dos poucos objetivos capazes de unir a nossa nação, no mais tão dividida e desigual.

Zé Marcelino de Rezende Pinto é professor da USP e presidente da 
Associação Nacional de Pesquisa em 
Financiamento da Educação (Fineduca).

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