[texto en portugués] Grupos Anhanguera e Kroton, que, juntos, têm mais de um milhão de alunos de ensino superior, agora avançam também sobre a educação profissional. Investigador Roberto Leher critica a monopolização do ensino superior e o enfraquecimento da educação pública
Fuente: Escola Politécnica de Saúde Joaquim Venâncio (EPSJV/Fiocruz)
Anunciada cerca de um ano atrás, acaba de ser autorizada pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) a fusão de dois grupos que, juntos, criam, no Brasil, a maior empresa do segmento educacional do mundo. Atingindo mais de 1,1 milhão de alunos nas modalidades presencial e à distância, a Anhanguera Educacional e a Kroton são empresas de capital aberto que têm ações negociadas na Bolsa de Valores e valem hoje, respectivamente, R$ 7 bilhões e R$ 14,5 bilhões no mercado de capitais. Ambas têm como maior acionista um Fundo de Investimento: no caso da Kroton, é o Oppenheimer e, na Anhanguera, é o PIP Administração de Recursos, antigo Patria Investimentos. “Há tempos está evidente que não existe uma regulação estatal para impedir a monopolização da educação superior no Brasil. Prova disso é que o Ministério da Educação nunca propôs uma legislação que estabelecesse regras para a presença do setor financeiro na área de educação”, diz Roberto Leher, professor da Faculdade de Educação da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ).
Na verdade, o governo tem sido um importante incentivador dessas instituições através dos programas que subsidiam com recursos públicos a oferta privada de educação. De acordo com informações da assessoria de imprensa das empresas, hoje 63,2% dos alunos da Kroton e 46,9% dos da Anhanguera na modalidade presencial estudam via Financiamento Estudantil (Fies) e cerca de 10% são oriundos do Programa Universidade para Todos (Prouni), ambas iniciativas do governo federal. A empresa não teve disponibilidade para conceder uma entrevista ao Portal EPSJV/Fiocruz mas, em depoimento a uma matéria do jornal Estado de São Paulo, em agosto de 2013, o diretor-presidente da Kroton, Rodrigo Galindo — que, segundo a assessoria de imprensa será o “CEO” (chief executive officer) da nova empresa — informou que programas como o Prouni e o Fies eram responsáveis, naquele momento, por 30% da receita do grupo empresarial. E, segundo ele, como o governo federal dava “sinais claros e positivos” de que os incentivos serão mantidos, esse montante poderia chegar a 50% da receita. De acordo com informações do Portal da Transparência do Governo Federal, só pelo Fies, a Anhanguera Educacional LTDA recebeu, em 2013, mais de R$ 536 milhões de recursos públicos. Os dados referentes à Kroton estão desmembrados entre as muitas instituições que compõem o grupo. Somadas as referências que o Portal EPSJV/Fiocruz conseguiu localizar, chega-se a pouco mais de R$ 412 milhões. Como se referem à isenção fiscal, os dados referentes ao Prouni não estão acessíveis. “As instituições financeiras estão caminhando pari passu ao apoio do Estado, diz Leher. E completa: “Os Fundos de Investimento perceberam que um novo nicho de mercado estava se abrindo no Brasil”.
A novidade é que essas instituições estão avançando para a educação profissional. Em dezembro de 2012, uma Medida Provisória do governo federal, que depois foi aprovada no Congresso, ampliou a rede ofertante do Programa Nacional de Acesso ao Ensino Técnico e Emprego (Pronatec), incluindo as instituições privadas de ensino superior. Num Comunicado ao mercado de setembro de 2013, em que anunciava um “desempenho recorde” nos “processos de captação e rematrícula do negócio Graduação”, a Kroton informava aos futuros investidores que estava sendo uma das pioneiras na oferta do Pronatec por meio da bolsa-formação, em que, como explica o texto, “os alunos de cursos técnicos serão integralmente subsidiados pelo Governo Federal”. Naquele mês, segundo o comunicado, 6.752 alunos iniciavam os cursos de educação profissional em 20 diferentes unidades educacionais que compõem esse grupo empresarial. Hoje, de acordo com a assessoria de imprensa das empresas, são quase 15 mil alunos, em 38 cursos. A Anhanguera já ultrapassou as 22 mil matrículas pelo Pronatec, oferecendo 30 cursos.
Rumo à educação profissional
Em matéria publicada no Estadão, o diretor-presidente da Kroton, Rodrigo Galindo classificou como “excepcional” o potencial de desenvolvimento do Pronatec. Três meses depois, reportagem publicada no jornal Valor Econômico em novembro de 2013 informou que a previsão era de que, sozinha, a Kroton alcançasse 30 mil alunos pelo Pronatec até o final de 2014. Em maio de 2014, novamente no Valor , Galindo defendeu o “ajuste das contas públicas” e o “investimento em educação”, nos moldes dos programas subsidiados pelo governo, como os pontos principais da plataforma política do futuro presidente da República. “Portanto, uma das prioridades do governante que assumir a Presidência é continuar valorizando a educação superior e o ensino técnico”, disse, incluindo o Pronatec entre os programas destacados como exitosos.
Em dezembro de 2013, a Bolsa de Valores de São Paulo emitiu o informe “Saraiva fecha parceria com Kroton para o Pronatec”. Segundo o texto, o objeto do contrato é o “fornecimento de conteúdo em 25 cursos ofertados pela Kroton Educacional S.A.” no âmbito do Pronatec. No mesmo texto, informa-se que no segundo semestre de 2013 a Saraiva comprou a Editora Erica LTDA numa “transação” que “marcou sua entrada no mercado de conteúdo voltado para ensino técnico profissionalizante”. “Essa vai ser uma tendência forte, primeiro porque podemos acompanhar o deslocamento desses programas para a educação profissional. Não vai surpreender que em pouco tempo o próprio Fies seja alargado para esse nível de ensino”, diz Leher.
Números
A Kroton Educacional, que segundo a assessoria de imprensa terá aproximadamente 66,5% das ações da nova companhia, tem hoje 56 instituições de ensino superior espalhadas pelo país e 487 polos ativos de educação à distância. A Anhanguera, que deve se tornar minoritária após a fusão, tem 70 campi de ensino presencial e 500 unidades de EaD. “Os Fundos de Investimento obedecem à racionalidade da alta lucratividade, daí a proliferação de cursos à distância e de curta duração. E o Estado não controla”, explica Leher.
Com a fusão, a expectativa é que esses números se agigantem: segundo a assessoria de imprensa, serão mais de um milhão de alunos, a presença das empresas se dará em quase 700 cidades brasileiras, com 126 campi e cerca de mil polos de EaD. Mostrando um processo de expansão para outros segmentos do setor, o grupo terá também 876 escolas associadas na educação básica. O resultado financeiro é um “valor de mercado superior a R$ 21 bilhões”.
Democratização da educação?
Esse impacto da fusão, no entanto, não vai se refletir em benefícios como a redução do valor da mensalidade paga pelos alunos — e pelo governo, no caso dos programas subsidiados. “Nada muda em um primeiro momento. Os ajustes das mensalidades seguirão conforme planejamento original das duas empresas, prévio à aprovação do Cade”, responde a assessoria de imprensa.
Para o professor Roberto Leher, o processo de monopolização e financeirização da educação, do qual a fusão da Kroton com a Anhanguera é exemplar, é mais uma evidência de que a política de subsídios públicos à educação privada não visa democratizar a educação, como se costuma anunciar. “Antes de tudo, é preciso observar um elemento histórico”, diz, explicando que o argumento de que é preciso garantir acesso aos milhões de jovens que hoje não conseguem chegar ao ensino superior é o mesmo que foi utilizado pela ditadura empresarial-militar para justificar a expansão da educação superior. “Era preciso democratizar e isso seria feito por meio da iniciativa privada para que os ‘pobres’ alcançassem o nível superior”, lembra, destacando que isso estagnou as instituições públicas naquele momento.
Segundo Leher, esse mesmo argumento sustentou a política atual, lançada ainda no governo Lula, referindo-se, inicialmente, às instituições filantrópicas. “Hoje estamos falando de subsídio para instituições altamente lucrativas”, diz, e completa: “Quem apoia essas políticas esquece as mudanças que elas vêm sofrendo desde 2007, 2008. Não estamos mais falando nem de instituições privadas familiares que ofertavam serviço educacional. O Estado está financiando os Fundos de Investimento. E o negócio dos Fundos não é educação e sim o próprio Fundo”. Essa política, diz, define o tipo de formação que se oferece: “minimalista e rudimentar”. “A pergunta que devemos fazer é se estamos mesmo garantindo que esses jovens alcancem a educação superior. E a resposta é negativa”, provoca.
O discurso de que essa é uma resposta a uma situação emergencial, da qual as instituições públicas não dariam conta, segundo Leher, reduz o debate e esconde alguns cálculos. E o primeiro debate que ele propõe é sobre o custo-aluno nessas diferentes instituições. “Se fizéssemos a conta do custo-aluno das universidades públicas excluindo a pesquisa, a manutenção dos hospitais universitários e outras coisas que julgamos importantes para a formação, certamente o nosso custo seria menor do que o que hoje é pago às instituições privadas”, calcula. Mas pondera: “Poderíamos formar profissionais de saúde sem ter hospitais universitários. Mas estamos convencidos de que essa formação é desastrosa para o país. Não queremos ter médicos, enfermeiros, fonoaudiólogos e outros profissionais sem experiência clínica e de pesquisa”.
Resta a pergunta sobre se existem recursos suficientes para se garantir a expansão da educação com esse nível de qualidade. É possível universalizar a educação, inclusive superior, com caráter público? Leher não tem dúvida. “Os recursos existem hoje, nos marcos da política atual”, garante. Além de mencionar a pouca participação da União no financiamento da educação, ele cita a política de isenção fiscal que vem sendo adotada pelo governo federal como um escoadouro de recursos públicos para o desenvolvimento das empresas privadas. Segundo auditoria do Tribunal de Contas da União (TCU) divulgada esta semana, a partir de relatórios da Receita Federal, estima-se que, só em 2013, os incentivos e renúncias fiscais e desonerações tributárias tenham custado R$ 203,7 bilhões aos cofres públicos. A esses números, Leher propõe que se acrescente o volume de sonegação fiscal das grandes empresas. De acordo com dados do Sindicato Nacional dos Procuradores da Fazenda Nacional (Sinprofaz), em 2013, deixou-se de arrecadar quase R$ 502 bilhões por sonegação. “Como não temos condições de ampliar R$ 200 bilhões para toda a educação pública?”, questiona Leher, referindo-se à demanda dos movimentos sociais de destinação de 10% do PIB para a educação pública. Mas ele lamenta que também essa luta esteja sendo subvertida a favor das empresas privadas. “Se examinarmos o Plano Nacional de Educação, que está nos seus momentos finais de votação, veremos que o texto oscila entre direcionar a verba pública para a educação, sem especificar que é a educação pública, e a versão que está agora na Câmara, de manter a qualificação de ‘pública’ mas conceituando como ‘público’ todas essas iniciativas que são auspiciadas pelo fundo público, como Fies, Prouni e Pronatec”, relata, concluindo: “Tudo agora está no rol do público. E isso é uma derrota profunda”.
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