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Daniel Cara, coordenador da Campanha Nacional pelo Direito à Educação do Brasil
Diante de propostas educativas recentemente apresentadas por alguns governos de Estados brasileiros, que se baseiam na ideia de fechar escolas públicas, ou privatizar a gestão desses centros educativos, passando sua administração a organizações sociais sem experiência comprovada na área, ou corporações militares, a CLADE entrevistou o coordenador nacional da Campanha Nacional pelo Direito à Educação do Brasil, Daniel Cara.
Para ele, a militarização da gestão escolar, assim como os contratos firmados pelos Estados com organizações sociais, parte de uma desconfiança em relação ao sistema público e à capacidade de educadoras e educadores para gerir bem as escolas públicas, pensamento que é reforçado pelos grandes meios de comunicação. “Tanto a militarização quanto a privatização da educação estão pautadas por uma tentativa de terceirização de responsabilidades, o que é algo extremamente danoso para o debate público. Para abrir mão de sua responsabilidade com a garantia do direito, os gestores optam por uma ou outra modalidade de terceirização, ou, como no caso de Goiás, optam pelas duas”, afirma. Leia a seguir a conversa completa.
CLADE – Temos acompanhado com preocupação as propostas políticas de alguns governos estaduais do Brasil, que se baseiam na ideia de fechar escolas públicas, ou privatizar a gestão desses centros educativos em Estados como São Paulo, Goiás, Piauí, Amazonas, Pará e Espírito Santo. Em Goiás e Amazonas, a terceirização da gestão de escolas públicas tem sido proposta em conjunto com a militarização de alguns desses centros educativos, sob o argumento de que, com isso, poderiam ser solucionados casos cada vez mais numerosos de violência e indisciplina entre estudantes. É possível traçar uma tendência nacional entre esses diferentes projetos? Ambos são exemplos de privatização da educação?
Daniel Cara – Os comitês da Campanha Nacional pelo Direito à Educação em Goiás e Espirito Santo, assim como em outros Estados brasileiros com a mesma problemática, hoje vivem uma forte tensão diante de modalidades específicas de privatização que se apresentam. O comitê da Campanha no Amazonas, por exemplo, tem tratado da questão da militarização e também da privatização da gestão de escolas públicas nesse Estado, enquanto o comitê do Pará conseguiu travar um processo de privatização de escolas públicas que era impulsionado pelo governo estadual. Então, nossos comitês estão mobilizados.
O que existe de ação comum, em nível nacional, e que identificamos como tendência, é que são programas com uma forte influência internacional, especialmente de países anglo-saxões, com forte interferência do Banco Mundial. Além disso, temos atores que acreditam que a privatização ou a militarização das escolas públicas, que representam uma retirada da discussão pedagógica da área da educação, são medidas positivas. Esses consideram que as/os profissionais de educação não têm se demonstrado capazes de resolver os problemas da área, elemento que tem se feito presente e tem se intensificado nas políticas públicas estaduais a partir do ano passado.
Existe outro fator, que é estrutural, e diz respeito a uma esperança equivocada de que a privatização reduza custos e otimize os orçamentos públicos. Então, toda a atual discussão sobre a crise fiscal do Brasil, ao lado desses argumentos, contribui com a tese dos que defendem a privatização e a militarização de escolas, o que na prática são processos de terceirização, de retirada do campo da educação da primazia no tratamento da questão pedagógica.
Hoje, há um trabalho coordenado de defesa desse pensamento, especialmente a partir dos meios de comunicação. Se você procurar, vai encontrar articulistas de grandes veículos e editoriais que defendem a terceirização da gestão de escolas. No entanto, temos convicção de que esse não é o caminho que de fato pode consagrar o direito à educação. Primeiro, porque falha na concepção de educação, já que a militarização certamente é anteposta a uma educação que promova a cidadania, como determina a Constituição Federal.
Segundo a Carta Magna, o direito à educação deve se basear em três pilares fundamentais: o pleno desenvolvimento da pessoa; seu preparo para o exercício da cidadania; e a preparação para o mundo do trabalho e para o desenvolvimento de uma atividade produtiva. Certamente, uma escolarização militarizada não garante o desenvolvimento pleno das pessoas, pois isso compreende valores democráticos e de respeito ao outro. Menos ainda garante o exercício da cidadania. Além disso, a terceirização da gestão de serviços públicos para organizações sociais comprovou na área de saúde, tanto no Brasil como em outros países, que esse tipo de política não garante os resultados esperados. Por isso, temos que enfrentar esse tipo de política, evitando que processos de terceirização como esse prosperem.
CLADE – Quais são, no posicionamento da Campanha Nacional, os impactos desse tipo de política para a realização do direito humano à educação?
Daniel Cara – Esse tipo de política gera basicamente dois problemas: primeiro uma concepção de educação que é equivocada, como já disse anteriormente; segundo, a otimização de custos que se prevê com esse tipo de medida não é real. Os processos de terceirização, na verdade, sobrecarregam o orçamento público, no sentido de que as organizações sociais, assim como as corporações militares, representam custos superiores ao da gestão educativa que responde às Secretarias de Educação. Então, o caminho correto é financiar adequadamente a educação com base nos indicadores CAQ (Custo Aluno Qualidade) e CAQI (Custo Aluno Qualidade Inicial), e não tentar buscar atalhos que não resolvem o problema e, pelo contrário, ainda custam mais caro aos cofres públicos.
Tanto isso é verdade, que as corporações militares contratadas para gerir as escolas públicas cobram taxas das/os estudantes, fazendo com que a educação deixe de ser gratuita. Isso tem sido obscurecido na defesa que os governos fazem sobre esse tipo de política no Amazonas, em Goiás e, mais recentemente, no Piauí. O que é importante ressaltar é que esses são governos que representam todos os espectros partidários. No Amazonas, o governo é do partido PROS, de centro-direita, o Estado de Goiás é governado pelo PSDB, que também é um partido de centro-direita. No entanto, em Piauí, quem está tentando colocar em prática essa iniciativa é um partido de centro-esquerda, que é o PT. Então, nós temos uma conjunção de fatores que mostra que esse tipo de política a favor da privatização e o descrédito em relação à educação pública estão acima de posições partidárias.
CLADE – Daniel, você falou bem sobre essa articulação da Campanha Nacional com os seus comitês regionais e locais, com o objetivo de incidir contra esse tipo de política. Vocês vêm acompanhando as mobilizações populares contrárias à privatização das escolas públicas no Brasil de alguma outra maneira?
Cara – A Campanha Nacional tem como princípio a garantia do direito à educação para todos e todas que vivem no Brasil, e para isso sabemos que é preciso trabalhar em duas esferas: tanto na local, que é onde se realiza o direito à educação, considerando as responsabilidades dos Estados e dos Municípios, quanto na esfera nacional, pois o governo federal tem uma obrigação constitucional com a realização desse direito, devendo garantir um padrão mínimo de qualidade a partir do assessoramento financeiro aos demais entes federados. Mas, para fortalecer a pauta nacional e a local, também temos um trabalho que é internacional. Para nós, a incidência em nível internacional pode ser muito útil desde que garanta o direito à educação de forma concreta para cada brasileiro e cada brasileira, para cada morador ou moradora do Brasil, que hoje não tenha respeitado o seu direito à educação. Refiro-me, por exemplo, aos e às imigrantes, principalmente peruanas/os, bolivianas/os e, mais recentemente, haitianas/os que vivem na cidade de São Paulo. Então, nosso trabalho de incidência é fazer essas pontes entre os níveis local, nacional e internacional.
Em setembro do ano passado, impulsionamos uma ação de incidência muito forte diante do Comitê dos Direitos da Criança das Nações Unidas, em Genebra, ao qual apresentamos, em conjunto com outras organizações, o posicionamento da Campanha Nacional sobre os impactos do ajuste fiscal para o financiamento do direito à educação no Brasil e a ameaça das políticas de privatização e de militarização de escolas no país. Tivemos como resposta uma declaração do Comitê contrária a esse tipo de política. Em resumo, nossas estratégias de incidência partem dos comitês regionais, mas passam também pelo nível nacional e, quando possível, pelo internacional, sempre com o objetivo de fortalecer a pauta local. Do contrário, dificilmente o nível internacional poderia surtir efeito no Brasil, pois se trata de um país relativamente autônomo das discussões sociais no plano internacional. Além disso, é um país muito grande e cheio de desafios.
CLADE – A Campanha Nacional identificou planos de privatização e militarização de escolas públicas em localidades diferentes das já mencionadas? Caso sim, quais?
Cara – O país está cheio de propostas como essa! Na verdade, é preciso tratar a privatização da educação com as caixas bem abertas, pois existem várias modalidades. A privatização pode, por exemplo, acontecer na esfera administrativa, a partir de contratos para o fornecimento de merenda, de segurança, de manutenção das escolas e equipamentos das redes públicas, etc. Essa é uma modalidade menos danosa, mas pode acontecer também na perspectiva da privatização do programa pedagógico, a partir da contratação de sistemas apostilados de ensino por parte dos Estados e Municípios. Além disso, há a privatização mais clara, que é a tentativa de terceirizar o trabalho pedagógico para corporações militares. Esse tipo de privatização direta é, a meu ver, a mais danosa. Isso porque a pedagogia exige a relação entre docente e estudante. Não posso acreditar que uma gestão militarizada é melhor que uma gestão feita por educadoras/es.
No entanto, esse tipo de privatização direta, baseada na militarização, acontece nos Estados de Goiás e Amazonas, e tem casos parecidos em expansão por toda a região Norte do país. Mais recentemente, o governo do Estado do Piauí começou a impulsionar também a militarização de escolas públicas, e organizações sociais têm sido muito incentivadas e financiadas a partir da articulação de alguns governos estaduais com o Banco Mundial, como é o caso do Pará, onde a população conseguiu impedir um processo de privatização semelhante, e também de Goiás, onde continuam as mobilizações de estudantes e professoras/es contra a proposta de terceirização e militarização da gestão de escolas. Também se observam projetos menores de privatização nos Estados brasileiros de Pernambuco e no Espirito Santo.
Acredito que a decisão do Supremo Tribunal Federal que permite a atuação de organizações sociais nas políticas públicas abre uma brecha para que esse tipo de ação seja autorizado, e isso significa que deveremos entrar na discussão a partir de pressão politica e argumentação técnica, que demonstrem na prática que a privatização não resulta em melhor qualidade do ensino, pelo contrário, não garante o direito à educação e não respeita a perspectiva da gestão democrática, que é um princípio constitucional.
Diante dos distintos modelos de privatização que você menciona, quais os riscos de que os recursos públicos para a educação nacional sejam dirigidos à iniciativa privada?
Cara – A ideia da “endoprivatização” é forte no Brasil e está totalmente introjetada na gestão pública brasileira. Buscamos enfrentá-la com o Custo Aluno Qualidade Inicial (CAQi), que limitaria, por exemplo, os gastos em contratos com empresas para a compra de materiais pedagógicos. Por esse índice, os materiais didáticos deverão ser parametrizados, e com isso o processo fica mais transparente. Hoje em dia, as rubricas na área da educação e a execução financeira não são transparentes. Não conseguimos encontrar informações sobre os gastos públicos com a área de maneira clara. Precisamos mobilizar as famílias e a sociedade para que fiscalizem e acompanhem a contratação de entes privados em educação. Os tentáculos da privatização são muito maiores e profundos do que conseguimos verificar. A Campanha Nacional defende recursos educacionais abertos, defende que a própria Secretaria da Educação produza seu material didático, aproveitando o conhecimento de seus professores e professoras. Defendemos também que todo material utilizado para fins educacionais tenha licença livre. No entanto, esse horizonte ainda tem se mostrado distante, porque o mercado é muito hábil em buscar brechas e alternativas.
CLADE – Nessas diferentes modalidades de privatização, como têm se combinado a terceirização e a militarização da gestão das escolas públicas, a partir de contratos com organizações sociais e/ou corporações militares? De que maneira, militarização e privatização afetam a gestão democrática nos centros educativos?
Cara – São duas iniciativas distintas de terceirização. Em uma, transfere-se a gestão pedagógica para uma corporação militar, que assume problemas de indisciplina sob demanda de mães e pais, que consideram que as educadoras e educadores não estão aptas/os a lidar com esses problemas. Com base nessa ideia, a gestão pública brasileira é cada vez mais ocupada por pessoas que acreditam que um professor é pior que um policial para educar uma criança, o que é algo que envergonha a sociedade brasileira perante outras sociedades. No entanto, a militarização não deixa de ser uma terceirização, pois parte, assim como nos contratos com organizações sociais, do pressuposto de que há uma desconfiança em relação à capacidade de educadoras/es para gerir bem as escolas públicas.
O equívoco, nesses dois casos, é que o Brasil nunca garantiu condições concretas para uma boa oferta do ensino, nunca garantiu condições de trabalho e remuneração dignas para as/os docentes. Menos ainda garantiu boa formação inicial e programas de formação continuada para essas/es profissionais, com a abordagem adequada de questões pedagógicas concretas. Além disso, nunca se garantiu uma estrutura adequada às escolas, para estimular as/os estudantes a permanecer estudando. Ou seja, houve uma injustiça histórica com a educação brasileira em termos de orçamento e vontade política. Tanto a militarização quanto a privatização estão pautadas por uma tentativa de terceirização de responsabilidades, o que é algo extremamente danoso para o debate público. Para abrir mão de sua responsabilidade com a garantia do direito, os gestores optam por uma ou outra modalidade de terceirização, ou, como no caso de Goiás, optam pelas duas.
Em relação aos impactos desse tipo de política para a gestão democrática e a formação de cidadania nas escolas, a militarização é especialmente grave, pois tem partido de uma demanda da população. Muitas famílias consideram que seus filhos e filhas vivem em uma condição de insegurança e, em vez de exigir a melhoria das políticas de segurança pública e de educação pública, pedem que o poder policial assuma as escolas. Aí a polícia assume as escolas, recebe muito mais recursos do que as escolas vinculadas à Secretaria de Educação, e ainda cobra taxas das famílias, selecionando dessa forma as/os estudantes que poderão frequentar aquele estabelecimento segundo suas condições financeiras. No entanto, o problema da indisciplina é resolvido pela seleção de estudantes, e não pela presença da polícia nas escolas.
CLADE – Observamos como uma constante em todos esses projetos polêmicos a forte reação de estudantes e professores/as, de um lado, e a repressão policial violenta e desmedida, bem como a criminalização dos movimentos sociais, por parte do Estado. Como isso também pode reforçar a redução da democracia e o favorecimento da presença do mercado nas escolas?
Cara – Há um problema estrutural da segurança pública brasileira, que é a militarização da polícia. Em nenhum país democrático deve haver uma polícia militarizada, menos ainda, uma educação militarizada. Se a polícia não sabe lidar com a democracia, respeitando o direito a uma manifestação política, imagina como deve lidar com a gestão democrática nas escolas. Afinal, na manifestação política, ainda que a polícia haja de maneira agressiva ou desrespeite os direitos humanos, tem para isso um mandato de defesa do patrimônio público e privado, assim como de defesa da ordem. Porém, faz mau uso dessas atribuições mesmo quando está atuando em seu mandato. Que essa polícia esteja na gestão das escolas é algo muito grave, pois não tem mandato para educar. Além disso, não posso acreditar que uma criança consiga aprender com medo. Nesse ambiente, ela não poderá ter um aprendizado adequado, que garanta a formação de um cidadão pleno.
CLADE – As ocupações de escolas por estudantes mobilizadas/os contra esse tipo de política em Goiás e São Paulo representaram um forte exemplo do potencial e da habilidade da juventude atual, para a prática da organização, da democracia, da auto-gestão e da participação social. De que maneira, em sua opinião, o poder público e a sociedade civil organizada deveriam apoiar e incluir a participação da juventude no desenho e implementação das políticas públicas educativas?
Cara – Essa é uma pergunta central. O que aconteceu em São Paulo foi totalmente espontâneo, e o que acontece agora em Goiás já se alimentou do exemplo de São Paulo. Sociologicamente, a ocupação de escolas nesses Estados é inspirada nas manifestações de junho de 2013 no Brasil, impulsionadas pelo Movimento Passe Livre, e também nas acampadas nos Estados Unidos e na Europa, especialmente na Espanha [contra as políticas que previam o recorte de direitos sociais no contexto de crise financeira internacional], assim como na “Primavera Árabe”. Esses casos são manifestações do que a juventude de hoje não quer.
Em São Paulo, as/os estudantes mobilizadas/os deixaram claro que não queriam o fechamento das suas escolas nem a reorganização escolar imposta pelo governo. Mas, em alguns casos exigiram mais que isso. As ocupações foram muito heterogêneas, e o que é válido nesse processo é observar que as/os estudantes se mobilizaram pelo direito à educação e por não perder a vaga nas escolas em que estudavam. Disso partiu também, em algumas escolas, a luta por uma nova educação, mais pertinente e com mais qualidade. Mas, ainda é um desafio envolver esses/as estudantes de maneira contínua na construção de gestão democrática das escolas, porque os centros educativos também são muito heterogêneos entre si.
Infelizmente, a participação na definição das políticas de educação ainda é muito rudimentar. Um primeiro passo poderia ser que os educadores e educadoras, numa postura humilde, pudessem chamar as/os estudantes, pais e mães para conversar, estimulando a participação da comunidade no ambiente escolar, de acordo com cada contexto e realidade. As ocupações deixaram claro que a participação e a gestão democrática no ambiente escolar são princípios educacionais que precisam ser finalmente cumpridos, pois estão inclusive previstos na Constituição Federal.