Responsáveis pela formação de 73% de todos os alunos matriculados no ensino superior brasileiro, instituições privadas se expandem em um sistema educacional com pouca ou nenhuma regulamentação e com padrões questionáveis de ensino
Fuente: Observatório da Educação
Após 10 anos ensinando alunos de Instituições de Ensino Superior (IES) privadas, a professora Olga (nome fictício) já passou por quatro organizações deste nível de ensino. Uma entre mais de 200 mil docentes destas IES no Brasil, ela expõe o receio de perder seu emprego – mesmo não tendo carteira assinada -, mas reforça a importância de reivindicar melhores condições de trabalho junto com a categoria da qual faz parte.
“Eu sinto uma enorme desvalorização tanto das condições de trabalho quanto da remuneração. O número de alunos tem aumentado bastante e o salário diminuído”, explicou. E complementou: “antes, com duas turmas eu conseguia o mesmo salário que tenho hoje dando aulas para seis classes”. Para ela, um dos maiores problemas começou a partir do momento em que grandes conglomerados passaram a adquirir IES menores e, consequentemente, a engessar a ação dos professores, padronizando aulas e avaliações.
A empresa em que a professora Olga trabalha é uma das 2.112 IES privadas que atuam no Brasil e que representam 87% de todas as que pertencem a este nível da educação. De acordo com dados do censo escolar de 2012, estas organizações empregam 218.565 professores, responsáveis pela formação de 73% de todos os alunos matriculados no ensino superior do país.
“Até 1999, prevaleciam instituições privadas sem fins lucrativos, mas já em 2005 há relatório da Unesco que classifica como dramático o fato de 19% de todas as matrículas do ensino superior serem de instituições com fins lucrativos (veja tabela 1)”, apontou o professor doutor e pesquisador sobre as condições de trabalho docente, Ronaldo Gaspar, em audiência pública realizada no último dia 23 de outubro na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp).
Para ilustrar o crescimento do setor, o professor citou o caso da empresa Anhanguera Educacional que, em nove anos, passou de 8.800 para 429 mil alunos e que, atualmente, aguarda decisão do Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) sobre sua fusão com a empresa Kroton Educacional. Caso a operação, estimada em R$ 12 bilhões, seja aprovada, o novo grupo será responsável pela formação de cerca de um milhão de alunos (Leia aqui matéria sobre a fusão das empresas). Após analisar os dados obtidos em balanços financeiros e informativos institucionais destas IES privadas, o professor Ronaldo afirmou que as sete maiores organizações do país possuíam cerca de 1.867.000 alunos em 2012 (veja tabela 2).
TABELA 1
TABELA 2
Risco zero
Convocada pelo Grupo de Trabalho Docência e Qualidade, a audiência pública realizada no último dia 23 de outubro na Assembleia Legislativa do Estado de São Paulo (Alesp) discutiu a “Regulação das Instituições de Ensino Superior privado e Iniciativas para impedir o desrespeito aos direitos trabalhistas dos professores e ao direito dos alunos à educação de qualidade”. Na ocasião, o presidente da Federação dos Professores do Estado de São Paulo (Fepesp), Celso Napolitano, caracterizou as negociações e fusões entre estas instituições educacionais como de “risco zero”, já que possuem lucratividade garantida por meio de programas como o Fundo de Financiamento Estudantil (Fies) do governo federal.
De acordo com pesquisa do Sindicato das Entidades Mantenedoras de Estabelecimentos de Ensino Superior no Estado de São Paulo (Semesp), em relação ao ano de 2012, o Fies é o principal responsável por não ter crescido a inadimplência de alunos no ensino superior, por exemplo. De acordo com própria divulgação do Semesp, o “resultado é considerado surpreendente, uma vez que a inadimplência dos demais setores da economia, medida pelo Banco Central, apresentou ligeiro aumento”. “Enquanto o índice de inadimplência do setor recuou de 8,46% em 2011 para 8,43% em 2012, a inadimplência total das pessoas físicas no Brasil cresceu de 7,70% para 8,00% no mesmo período”.
Para a organização, “além de se tornar um excelente programa de inclusão dos jovens no ensino superior, o Fies também tem se mostrado um importante meio para os alunos que, por qualquer motivo, passam por dificuldades financeiras”.
Além da constatação sobre o Fies, Celso Napolitano citou problemas até mesmo nas instituições privadas sem fins lucrativos, afirmando que, muitas vezes, as mantenedoras cobram aluguéis abusivos de suas instituições como forma de capitalizar recursos. Para o professor Ivonésio Santos, da Universidade Metodista de Piracicaba (Unimep) – que é uma IES privada sem fins lucrativos – o processo de mercantilização passa a atingir também instituições tradicionais como a que trabalha. “Na Unimep, foi criado um novo modelo de carreira para os professores que entraram nos últimos sete anos e que reduziu o valor da hora/aula pela metade, além do fato de que acabaram com a possibilidade de progressão horizontal destes profissionais. Alguns cursos já foram extintos e a pressão continua”, relata Ivonésio.
Quanto à expansão das IES privadas, o presidente da Fepesp alertou também que os grandes conglomerados da educação privada acabam gerando a precarização do trabalho docente, a partir da piora das condições de trabalho, de demissões em massa e da redução de salários, entre outros problemas. (Leia aqui matéria sobre as reivindicações dos professores das IES privadas)
No mesmo sentido, o professor Ronaldo Gaspar destacou que o processo de fusão entre as instituições gera o crescente aumento da rotatividade e da demissão de professores. “Quando a Kroton comprou a Iuni Educacional, no Mato Grosso, ocorreu diminuição do quadro funcional em 1079 funcionários, dos quais 449 eram professores e 630 eram funcionários técnico-administrativos”, exemplificou.
Docência e qualidade
“Muitas pessoas acham que se defender no trabalho no setor privado é a mesma coisa que querer perpetuar o setor. Mas isso não é verdade, porque boa parte dos que trabalham nestas instituições gostaria que a educação fosse toda pública. Negam nossa existência para não serem a favor do ensino privado e nós, professores, é que acabamos sendo punidos”, reclama a professora Maria Lúcia Salgado, uma das integrantes do GT Docência e Qualidade, formado por docentes de ensino superior de instituições privadas e que se reúne quinzenalmente na Alesp.
A professora afirma que a luta por melhores condições de trabalho nas IES privadas faz parte da garantia do direito à educação, inclusive, da educação pública. A lógica de mercado que, segundo ela, atinge instituições educacionais públicas e privadas, se dá a partir do momento em que se compreende a educação como um serviço e não como um direito. “Se for entendida como um serviço, a educação pode ser vendida. A partir desta compreensão, o governo acha que esse serviço oferecido pelo setor público também deve ser o mais barato possível. Desta forma, não existe uma priorização no investimento para a garantia de um direito, mas sim um barateamento do serviço”, analisa a professora.
Sobre a discussão em relação à qualidade da educação no setor privado, o professor Ronaldo chama a atenção para o perigo da ideia de uma “eficiência gerencial”, que se fundamenta em políticas de estímulo ao Ensino à Distância de maneira restrita, ao remanejamento de salas de aula e à redução de salário de seus professores, entre outras coisas. “Um dos exemplos desta concepção de qualidade é que em muitas destas instituições os gastos com publicações de artigos de professores e alunos são contabilizados na rubrica de marketing e não na rubrica relacionada às práticas educacionais”, observa Ronaldo.
Educação pobre para pobres
Para o professor Danilo Amorim, que também participa do GT Docência e Qualidade, há forte relação entre a universalização do ensino superior e o declínio da qualidade da educação neste nível educacional. “Setores massivos da classe trabalhadora estão entrando no ensino superior e é exatamente por isso que ele vem tendo uma queda de qualidade absurda. Talvez os próprios alunos tenham que identificar estes problemas, ver que estão sendo enganados e que têm acesso, no máximo, a um treinamento sem grandes funções no mundo contemporâneo”, defende Danilo.
Em sentido contrário, a Semesp afirma que a qualidade da formação das IES privadas do estado de São Paulo, por exemplo, se comprova a partir da inserção de profissionais no mercado de trabalho. Segundo a pesquisa Semesp: Formação Acadêmica dos Profissionais, 93% dos profissionais entrevistados formaram-se em graduações de IES privadas.
Já para a presidenta da União Estadual dos Estudantes (UEE), Carina Vitral, que também esteve presente na audiência pública realizada na Alesp, a expansão das IES privadas afeta diretamente a qualidade do ensino oferecido aos estudantes. “As universidades privadas trabalham basicamente com ensino e de maneira muito restrita com pesquisa e extensão. O que nós vemos nas visitas que fazemos é a prática recorrente de se juntar turmas, a falta de liberdade para a organização estudantil e até parece que biblioteca virou artigo de luxo na maioria delas”, avalia Carina ao reafirmar a necessidade de regulamentação destas instituições.
Regulamentação
Uma das principais reivindicações dos professores das instituições privadas de ensino superior é a regulamentação do setor de forma que se priorize jornadas de trabalho em tempo integral ou parcial e que a garantia de boas condições para o trabalho docente seja um dos critérios para a avaliação destas organizações.
Neste sentido, uma das perspectivas para a categoria é a criação do Instituto Nacional de Supervisão e Avaliação da Educação Superior (Insaes). Caso aprovado, o instituto se constituirá como uma autarquia federal, vinculada ao Ministério da Educação (MEC), e que deverá supervisionar e avaliar instituições e cursos de educação superior públicos e privados. Também durante a audiência pública realizada na Alesp, o presidente da Fepesp, Celso Napolitano, afirmou que o instituto é uma ferramenta que está em análise no Congresso, mas que “enfrenta infindáveis discussões, estimuladas pelo lobby patronal, que é contra a proposta”.
A efetividade do Insaes, segundo Maria Lúcia, depende da vontade e do princípio político do governo federal. “Tudo vai depender do intuito político do Insaes, porque ele pode existir tanto para regular de acordo com os interesses da iniciativa privada, quanto pode existir para garantir o direito da população à educação de qualidade para todos”, afirma.
Quanto às próximas ações do grupo, Maria Lúcia explica que a perspectiva é aumentar a articulação entre professores de mais instituições e seguir os encaminhamentos da audiência realizada na Assembleia: a solicitação, pela comissão de educação da Alesp, de uma audiência pública com o ministro da educação, Aloízio Mercadante; a divulgação dos materiais produzidos pelo GT; e o envio de moção ao MEC e à presidenta Dilma Rousseff solicitando regras mais rígidas para as IES privadas.